Trusts: finalmente a legislação brasileira tocou no nome deles

Por Daniel Bijos Faidiga   

Joana Bethonico Braga

A “taxação dos super ricos” pelo atual governo foi pauta recorrente no ano de 2023 e muito se discutiu, entre medida provisória, projeto de lei, mudança na redação do texto e, finalmente, nos 45 minutos do segundo tempo, a Lei nº 14.754 foi promulgada em 12 de dezembro de 2023.

Poder-se-ia dedicar páginas e páginas a todas as mudanças e impactos que a Lei das Offshores, como ficou conhecida, trará para o contribuinte residente no Brasil com patrimônio no exterior, seja pelas aplicações financeiras mantidas lá fora, fundos ou empresas (controladas).

No entanto, aqui pretendemos dedicar algumas linhas àquele instituto mais tímido e retraído, menos popular, pois mais incomum, que é o trust que, pela primeira vez, é tratado pela legislação nacional.

A Lei nº 14.754 trouxe a definição legal de trustee e de todas as figuras envolvidas na relação com ele, quais sejam: instituidor (settlor), administrador do trust (trustee), beneficiário (beneficiary), bem como os atos e documentos para a sua constituição e manutenção: distribuição (distribution), escritura do trust (trust deed ou declaration of trust) e carta de desejos (letter of wishes).

O trust é um instituto sui generis importado do common law da Inglaterra, uma espécie de negócio fiduciário atípico que, conforme definido na Lei nº 14.754, “é uma figura contratual regida por lei estrangeira que dispõe sobre a relação jurídica entre o instituidor, o trustee e os beneficiários quanto aos bens e direitos indicados na estrutura do trust”.


O trust é estabelecido por meio do trust deed (um contrato) que transfere o patrimônio (ou parte dele) de um settlor (instituidor) ao trustee.

De forma mais simples, significa que alguém quer que um terceiro (trustee) fique com seu patrimônio e siga regras muito particulares de distribuição a quem quer que seja (não só herdeiros) e seu uso, se não distribuído aos beneficiários.

Essa pessoa é quem cuida para que os desejos do instituidor sejam minuciosamente cumpridos e a massa patrimonial seja administrada por meio das regras instituídas — com todas as penas da lei do país em que feito — se descumprir qualquer orientação. Por isso é que se usa o termo trust (confiança).


Pontos mais relevantes da lei

 

E o que traz a Lei nº 14.754 além de estabelecer os conceitos legais? Como pontos mais importantes, destacamos a definição do titular dos bens e direitos do trust (sim, apesar de óbvio, isso não estava devidamente disposto em lei) que é o instituidor enquanto vivo ou até a distribuição dos bens para os beneficiários (sendo que se o trust for irrevogável — ou seja, o instituidor não pode se arrepender e desfazê-lo —, os beneficiários já são titulares dos bens desde a sua constituição) e as regras de tributação.

A lei também instituiu a obrigação de identificação dos bens do trust na declaração de Imposto de Renda a partir deste ano.

Nos termos da nova lei, quando os bens contidos no trust forem distribuídos para os beneficiários, a natureza jurídica será de doação se o instituidor estiver vivo ou de herança se houver falecido. Tal definição traz os fatos geradores do ITCMD (imposto de herança) que também está em vias de ser modificado conforme trata a reforma tributária.

Portanto, a instituição de um trust irrevogável é sujeita à incidência de ITCMD e a declaração do trust na DAA/DIRPF do instituidor não afasta a incidência do referido imposto. Quanto aos rendimentos e ganhos de capital, eles serão tributados pela pessoa física que for considerada titular do patrimônio na data do fato gerador.

O trustee, como administrador do trust, deverá disponibilizar recursos financeiros e as informações necessárias para que o Imposto de Renda seja pago, bem como as demais obrigações tributárias sejam cumpridas.

Enquanto o instituidor estiver vivo, ele é o responsável pelo reporte e recolhimento do imposto sobre os rendimentos auferidos pelo trust. Quando do seu falecimento, o(s) beneficiário(s). Caso sejam menores, o responsável legal.

Outra determinação da lei é que o instituidor ou beneficiários (no caso de o primeiro ter falecido) deverão alterar a escritura do trust ou a carta de desejos para incluir no documento cláusula que determine o cumprimento das determinações da nova lei ou, caso não tenham poderes para alterar a escritura, que enviem comunicação formal ao trustee para o atendimento da Lei nº 14.754.

Quanto à declaração da estrutura do trust no Imposto de Renda, os bens e direitos, independentemente da data de aquisição, deverão ocorrer pelo titular (instituidor ou beneficiários, conforme regras esclarecidas nos parágrafos anteriores) na sua declaração anual de IR com relação à data-base de 31 de dezembro de 2023, e caso ele já tivesse sido declarado no passado, deverá ser substituído pelos bens e direitos alocados dentro do trust, um a um, de forma individualizada, devendo seu valor ser considerado proporcionalmente em relação ao valor do patrimônio total contido na estrutura (regra de três). 

Por fim, caso o trust seja titular de uma controlada (empresa offshore), para fins de declaração do IR, a controlada deverá ser tida como detida pelo instituidor ou beneficiário, a depender (regime da transparência) e serão aplicadas as regras de tributação de tais estruturas dispostas na própria Lei nº 14.754.

Diversos aspectos ficaram de fora da legislação

Vê-se, portanto, que — conforme até a natureza desta lei — a preocupação foi eminentemente tributária — ainda que falha neste ponto. Afinal, nem sempre os beneficiários são pré-conhecidos e podem ser responsáveis pelas declarações e tributos.

Mas a questão é que, sendo uma legislação tributária, incontáveis aspectos (principalmente de Direito de Família e Sucessório), ficaram de fora. A título de exemplo: é possível instituir um trust com todo o patrimônio do settlor (garantindo-se sua subsistência)? Se sim, e ele não tem bens quando morre (são todos do trustee) é possível desconsiderar herdeiros necessários e legítimos? 

Apesar de uma regulamentação tímida que invoca a figura de origem estrangeira, é um grande avanço que a lei pátria trate de tal instituto, dando maior segurança jurídica aos contribuintes. Isso não significa que não haverá questionamentos, mas só o fato de termos o reconhecimento da existência do trust e das figuras a ele correlatas e de orientação quanto à sua tributação, já nos dá um ponto de partida e nacionaliza a “estrutura”, facilitando o entendimento quanto à regulamentação.

Fonte: Consultor Jurídico 

Galeria de Imagens
Outras Notícias
Imunidade de IBS e CBS na exportação de serviços: desafios e dúvidas na LC 214
Devedor Contumaz: algumas impressões sobre o PLP 164/2022
IBS e CBS: desafio dos contratos complexos na reforma tributária
Carf mantém contribuição previdenciária sobre vale-transporte sem desconto de 6%
STJ decide pela incidência do IRPJ e da CSLL sobre juros de mora
Os juros sobre o capital próprio e as contas do patrimônio líquido
STF anula decisão do Carf sobre terceirização em atividade-fim
Gilmar Mendes suspende todos os processos do país sobre pejotização e entregadores
Uso exclusivo de imóvel por herdeiro e limites da indenização
Tributação disfarçada de dividendos e distribuição disfarçada de lucros
STF confirma repercussão geral para análise de vínculo com franquias e pejotização
PIS/Cofins e agronegócio: frete e a Súmula Carf 217
Os serviços técnicos sujeitos à tributação
Projeto de lei que regulamenta a figura do devedor contumaz é aprovado na CCJ do Senado
IR na previdência complementar e o momento da eventual escolha pelo regime regressivo
Produção de bens não tributados também gera crédito de IPI, reafirma STJ
PGFN regulamenta transação para débitos judicializados de alto valor
CCJ aprova regras para identificar e punir devedores contumazes
Projeto isenta de tributo as compras internacionais de até US$ 600 por ano
Receita Federal esclarece sobre o que acontece a quem não envia a Declaração do Imposto de Renda
Reforma tributária, produtor rural e tributação da CBS e do IBS