Moore v. United States e a tributação de rendimentos não realizados

Suprema Corte dos EUA está prestes a julgar importante precedente sobre tributação de lucros auferidos no exterior

Por Caio Cezar Soares Malpighi e Leonardo Aguirra de Andrade

A Suprema Corte dos Estados Unidos da América está prestes a julgar importante precedente sobre a tributação de lucros auferidos no exterior. Trata-se do caso Moore v. United States, em que se discute se os Estados Unidos da América poderiam cobrar, automaticamente, de acionistas americanos, imposto calculado sobre os lucros apurados por suas sociedades localizadas no exterior, mas que não foram efetivamente distribuídos.

A depender do que for resolvido pelos Justices da Suprema Corte, haverá um grande impacto na política fiscal dos Estados Unidos. Além disso, se firmará uma regra importante quanto aos limites da competência do Congresso, para se instituir tributos federais sobre a renda.

Assim, dada a importância do que será decido, o presente texto se propõe a traçar algumas notas sobre o caso, com base em uma análise dos seus antecedentes e dos argumentos que provavelmente deverão ser enfrentados no julgamento.

Além disso, será oportuno também traçar um paralelo entre a lei tributária que terá a constitucionalidade julgada pela Suprema Corte dos Estados Unidos e o projeto de lei que Governo Federal do Brasil apresentou ao nosso Congresso Nacional, atualmente em discussão no Senado Federal, para se tributar lucros acumulados e não distribuídos por fundos de investimentos fechados, bem como lucros apurados por offshores, cuja tributação até então encontra diferimento em nossa legislação, que determina a tributação apenas no momento da realização.

1.     Contextualizando Moore v. United States

Em 2017, seguindo a pauta de uma política fiscal de redução de tributos para repatriação de receitas, o Congresso dos Estados Unidos promulgou a chamado Tax Cuts and Jobs Act. Dentre outras questões, esse diploma legal tratou de reduzir a carga o imposto incidente sobre dividendos distribuídos oriundos de sociedades localizadas em jurisdições estrangeiras, que seriam remetidos a sócios localizados nos Estados Unidos, que detém pelo menos 10% do capital da estrangeira

Até então, as empresas estrangeiras não distribuíam os lucros auferidos aos seus sócios americanos, buscando diferir ao máximo a tributação sobre eles nos Estados Unidos, que se mostrava bem elevada. Foi justamente essa alta carga tributária que o Governo estadunidense buscou reduzir, para promover um incentivo fiscal à remessa de lucros auferidos no exterior para a sua jurisdição.

Ocorre que, para compensar a redução de receita decorrente desta medida, o Tax Cuts and Jobs Act impôs a tributação do estoque de rendimentos acumulados por sociedades estrangeiras nos últimos 30 (trinta) anos – desde 1986 – e que ainda não haviam sido distribuídos por essas companhias, que evitavam a tributação americana de seus sócios. Tratou-se, portanto, de uma repatriação forçada de recursos (deemed repatriation). A alíquota instituída foi de 15,5% para os lucros mantidos em caixa, e 8% para outras hipóteses. A legislação ainda autorizou o pagamento parcelado em 8 anos.

À época da aprovação da lei, estimou-se que essa medida de tributação obrigatória dos lucros acumulados no exterior (mandatory repatriation tax) poderia trazer aos cofres públicos uma receita de aproximadamente U$ 340 bilhões, em 10 anos (de 2018 a 2027) [1].

Haveria, contudo, um problema jurídico nessa medida: se trataria de tributação de lucros não disponíveis e – mais grave que isso – retroativa, o que violaria, respectivamente, a 16ª e a 5ª emendas da Constituição dos Estados Unidos. Com base nesses fundamentos, o casal Charles e Kathleen Moore questionam a tributação perante a Suprema Corte.

1.     Realização e disponibilidade para a tributação da renda nos Estados Unidos

Conforme consta dos autos do writ of certoriari interposto[2], o casal investiu, no ano de 2005, em ações de uma startup indiana chamada KisanKraft, que fornece ferramentas para agricultores carentes na Índia. Por sua vez, essa empresa reinvestiu, ao longo dos anos, todo o lucro gerado, de modo que o casal Moore nunca chegou a receber dividendos por sua participação acionária. Contudo, com o mandatory repatriation tax instituído em 2017, todos os lucros apurados até então deveriam ser tributados, mesmo nunca tendo sido distribuídos.

Segundo sustentam as partes e os amici curiae contrários à medida, essa tributação que pretende retroagir trinta anos no passado para atingir lucros que sequer foram distribuídos violaria, primeiramente, a 5ª emenda, que estabelece a obrigatoriedade de devido processo legal. Desse modo, o Tax Cuts and Jobs Act violaria o devido processo legal ao pretender atingir riquezas geradas até 30 anos antes de sua vigência.

Mas, o argumento principal que se discute naquele caso é a violação à 16ª emenda da Constituição, que atribui competência ao Congresso Nacional para instituir tributos sobre a renda.[3]

É bom lembrar que essa emenda foi promulgada em 1913, após a Suprema Corte declarar inconstitucional, em 1895, a instituição do imposto de renda federal, por falta de competência federativa, no paradigmático caso Pollock v. Farmers’ Loan & Tr. Co.[4]

Agora, no entanto, a discussão é outra: o conceito de renda (income) previsto no texto da 16ª emenda, para fins de tributação federal, comportaria a figura dos lucros acumulados e não realizados? Afinal, para o estado poder tributar uma riqueza, ela não deveria estar disponível ao contribuinte (cash tax basis)? Ou, ao revés, bastaria o acúmulo (accrual tax basis), sem necessidade de realização, para a sua tributação?

De um lado, o casal Moore, apoiado pela Câmara de Comércio dos Estados Unidos como amicus curiae[5], bem como pelo editorial do The Wall Street Journal[6], sustenta que o conceito constitucional de renda implicaria evento de realização (realization event), com o recebimento de dinheiro ou troca de propriedade pelo contribuinte[7].

Trazendo uma perspectiva contrária, o Procurador Geral sustenta que o conceito de renda previsto na 16ª emenda permitiria tanto a tributação do acúmulo financeiro gerado sem a realização, como também a tributação da renda efetivamente realizada. Segundo tributaristas norte-americanos, essa visão encontraria forte respaldo na doutrina, apesar de nunca ter sido endossada ou enfrentada diretamente pela Suprema Corte[8].

A questão acerca da necessidade de realização na concepção constitucional de renda tributável já foi julgada favoravelmente pela Suprema Corte no ano de 1920 em Eisner v. Macomber[9]. Naquela oportunidade o tribunal fixou o entendimento de que a 16ª emenda vedava ao Congresso tributar os lucros de uma empresa até que o seu acionista o tivesse efetivamente realizado (p. ex. recebendo tais proventos por meio de dividendos). Esse precedente é antigo e, ao longo do tempo, foi relativizado, apesar de nunca ter ocorrido um overruling expresso por parte da Suprema Corte.

Por isso, a depender do que for decidido pela Suprema Corte, e da amplitude da ratio decidendi a ser fixada no julgamento, o conceito de renda tributável nos Estados Unidos poderá ser delimitado pela necessidade de realização e de disponibilidade (liquidez).

Necessário, contudo, ressalvar que eventual decisão favorável aos contribuintes não impactaria a tributação automática de empresas americanas (corporate income tax) do lucro de suas controladas no exterior. Isso porque a Suprema Corte já estabeleceu em Flint v. Stone Tracy Co. que o imposto corporativo cobrado sobre os lucros das empresas americanas não se sujeitaria às regras da 16ª emenda, se mostrando uma exceção à regra.[10]

·         Debates atuais no Brasil sobre a disponibilidade e a realização da renda, bem como sobre a inconstitucionalidade da tributação retroativa de lucros acumulados

Essa análise pela Suprema Corte dos Estados Unidos quanto à constitucionalidade do mandatory repatriation tax instituído pelo Tax Cuts and Jobs act também pode ser um interessante paradigma de Direito Comparado a ser estudado pelos tributaristas brasileiros, que também enfrentam debates de natureza semelhante.

No Brasil, no ano de 2013, o Supremo Tribunal Federal julgou Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.588[11], declarando a constitucionalidade da tributação automática de lucros de controladas, independentemente da sua localização, e de coligadas localizadas em paraísos fiscais, mesmo sem a efetiva distribuição. Contudo, naquele mesmo julgamento, os Ministros também declararam inconstitucional a tributação retroativa, sobre os lucros acumulados até o início da vigência da lei que instituía essa tributação (trata-se de técnica de tributação semelhante àquela utilizada nos EUA para o mandatory repatriation tax).

É bom lembrar que naquele paradigma se discutia a tributação do lucro de pessoas jurídicas localizadas no Brasil que controlavam ou eram coligadas com pessoas jurídicas localizadas em jurisdição privilegiada. E que, pelo fato de os contribuintes em questão serem pessoas jurídicas, se sujeitam ao regime de competência e reconhecem o lucro de suas controladas em seus resultados pelo Método de Equivalência Patrimonial, diferentemente do que um contribuinte pessoa física, que se sujeita ao regime de caixa.

E justamente esses contribuintes pessoas físicas se tornaram alvo de recente medida tributária proposta pelo Governo Federal, que reacendeu a discussão sobre esse tipo de técnica de tributação. Por meio do Projeto de Lei nº 4.173/2023, o Governo Federal pretende tributar automaticamente rendimentos não distribuídos por Fundos de Investimento fechados a pessoas físicas brasileiras, bem como lucros apurados por entidades offshores, também não distribuídos a pessoas físicas. Além disso, para os fundos de investimento, o referido projeto de lei prevê a tributação retroativa dos rendimentos acumulados até dezembro de 2023.

Isso porque, do mesmo modo que os lucros não distribuídos aos acionistas americanos pelas empresas estrangeiras, os rendimentos dos fundos de investimentos constituídos sob a forma de condomínio fechado no Brasil não são tributados, assim como os lucros apurados pelas offshores detidas por pessoas físicas brasileiras. Essa valorização patrimonial tem, pela legislação vigente, a sua tributação diferida para a data da efetiva realização. Como a renda gerada pelos fundos é quase sempre reinvestida, os cotistas dos fundos evitavam a tributação desses rendimentos. Em linha, como os lucros apurados pelas offshores dificilmente são remetidos ao Brasil para a distribuição, também não são atualmente tributados.

Com a proposta de tributação desses rendimentos não realizados, volta à tona a discussão quanto à constitucionalidade de uma exação de tal ordem, seja pela violação direta ao princípio constitucional da irretroatividade tributária (art. 150, alínea “a”, inciso III, da Constituição Federal), no que diz respeito à tributação obrigatória do estoque de rendimentos acumulados pelos fundos de investimento; ou então em relação à tributação prospectiva dos rendimentos não realizados, tanto pelos fundos de investimento onshore quanto pelas entidades offshore, o que violaria o conceito de renda (art. 43 do Código Tributário Nacional).

Portanto, para fins de estudos de Direito Comparado, será oportuno ao Direito Tributário brasileiro o que a Suprema Corte dos Estados Unidos decidirá em Moore v. United States.

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[1] Conforme informações divulgadas pela organização Tax Policy Center: https://www.taxpolicycenter.org/briefing-book/what-tcja-repatriation-tax-and-how-does-it-work

[2] Para consulta, uma lista de acesso às principais peças apresentadas nos autos do processo: https://www.scotusblog.com/case-files/cases/moore-v-united-states-3/

[3] “The Congress shall have power to lay and collect taxes on incomes, from whatever source derived, without apportionment among the several States, and without regard to any census or enumeration”. In Constitutional Annotated: Analysis and Interpretation of the U.S. Constitution: https://constitution.congress.gov/browse/amendment-16/#:~:text=Sixteenth%20Amendment%20Income%20Tax,to%20any%20census%20or%20enumeration.

[4] Para consulta, o caso Pollock v. Farmers’ Loan & Tr. Co., julgado pela Suprema Corte em 1895: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/157/429/

[5] Vale a leitura da petição apresentada pela Chamber of Commerce of The United States: https://www.supremecourt.gov/DocketPDF/22/22-800/259967/20230327135010470_File%20-%20Chamber%20Amicus%20Supporting%20Cert%20-%20Moore%20v.%20U.S..pdf

[6] Para leitura, a íntegra do editorial do The Wall Street Journal, de 27 de julho d 2023: https://www.wsj.com/articles/supreme-court-moore-v-u-s-wealth-tax-patrick-bumatay-ninth-circuit-83610ed

[7] HAMEL, Daniel J. The Low and High Stakes of Moore. TaxNotes. Disponível em: https://www.taxnotes.com/featured-analysis/low-and-high-stakes-moore/2023/07/21/7gzm7

[8] HAMEL, Daniel J. The Low and High Stakes of Moore. TaxNotes. Disponível em: https://www.taxnotes.com/featured-analysis/low-and-high-stakes-moore/2023/07/21/7gzm7

[9] Para consulta, o caso Eisner v. Macomber, disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/252/189/

[10] Para consulta, o caso Flint v. Stone Tracy Co., disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/220/107/

[11] Para consulta, o acórdão da ADI nº 2.588, disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630053

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