ITBI: tese fixada no STF tem sido mal-interpretada para justificar cobrança

Imposto é inexigível mesmo que exista divergência quanto ao valor do imóvel

Há algum tempo tratei da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no RE 796.376 (Tema 796 de Repercussão Geral), no qual se discutia a extensão da imunidade relativa ao ITBI (art. 156, § 2º, CR). 

Naquela oportunidade, me debrucei sobre os fundamentos da decisão lá proferida para demonstrar que, no meu entender, se consolidou o entendimento no sentido de que a imunidade do ITBI, no caso de incorporação de imóveis ao patrimônio de pessoa jurídica na integralização de capital, é incondicionada, sendo irrelevante, pois, o exame da atividade preponderante da pessoa jurídica para fins de aplicação do preceito imunizante. O objetivo, agora, é diverso. 

Embora o julgamento tenha ocorrido há algum tempo (5/8/2020), ainda há divergências quanto à interpretação do acórdão da Suprema Corte. Além da discussão sobre a natureza da imunidade (se condicionada ou não) – e sobre tratar-se ou não de matéria decidida naquela oportunidade (ser ou não obter dictum) –, observa-se um aumento expressivo do contencioso administrativo e judicial também por conta dos sentidos controversos atribuídos à tese de repercussão geral fixada naquela oportunidade. 

 Antes, porém, de examinar a tese fixada, é preciso lembrar os termos da controvérsia, que pode ser assim sintetizada:

1. uma pessoa jurídica teve bens incorporados ao seu patrimônio em realização de capital. No entanto, pelo fato de o valor dos imóveis (R$ 802.724) ser superior ao valor do capital social integralizado (R$ 24.000), a diferença (R$ 778.724) foi contabilizada como reserva de capital; 

2. após a incorporação dos bens ao patrimônio da pessoa jurídica (nos termos citados), o contribuinte apresentou pedido de não incidência do ITBI sobre tal operação, mas este foi deferido apenas em parte, pois a Municipalidade entendeu que a imunidade se aplicaria apenas ao valor correspondente ao capital integralizado, não sobre a diferença contabilizada como reserva de capital; 

3. como resultado do deferimento parcial, foi constituído crédito tributário relativo ao ITBI sobre a diferença mencionada, o que motivou a propositura de medida judicial para anular a cobrança e ver reconhecida a aplicação da imunidade sobre a parcela do bem contabilizada na conta “reserva de capital”.

Daí já se vê que ali não se discutia a aplicação da imunidade à parcela do imóvel incorporada ao capital da pessoa jurídica. A controvérsia era outra: o que se pretendia era aplicar a imunidade a bens (ou parcela de bens) que não foram incorporados ao capital, mas sim à reserva de capital.  

Voltando ao voto condutor do acórdão – proferido pelo ministro Alexandre de Moraes – verifica-se que lá prevaleceu, essencialmente, o seguinte entendimento:

1. ao transferir imóveis para a pessoa jurídica, os sócios podem fazê-lo apenas com o objetivo de integralizar o capital ou para atingir esta e outras finalidades, ou seja: para integralizar parcela do imóvel ao capital e destinar a parcela remanescente para outra conta (por exemplo, constituir reserva de capital, como no caso examinado); e

2. se optarem pela segunda hipótese (bem parcialmente destinado ao capital social), somente aplicar-se-á a imunidade do ITBI na transferência destinada à subscrição do capital, posto que apenas essa está prevista no preceito constitucional.

Vejamos, a propósito, trecho do voto vencedor, proferido pelo ministro Alexandre de Moraes, que deixa claro tal entendimento:

“A CARTA MAGNA de 1988 imunizou a integralizac?a?o do capital por meio de bens imo?veis. Do teor do inciso I acima, extrai-se que na?o incide o ITBI sobre o valor do bem dado em pagamento do capital subscrito pelo so?cio ou acionista da pessoa juri?dica. […]

Segundo Kiyoshi Harada, o que a norma imuniza na?o e? qualquer incorporac?a?o de bens ou direitos ao patrimo?nio da pessoa juri?dica; a norma imunizante diz respeito exclusivamente ao pagamento em bens ou direitos que o so?cio faz para integralizac?a?o do capital social subscrito que pode ocorrer tanto no ini?cio da constituic?a?o de pessoa juri?dica, como tambe?m posteriormente por ocasia?o do aumento do capital (ITBI – Doutrina e pra?tica. Sa?o Paulo: Atlas. 2010, p. 85). […]

Revelaria interpretac?a?o extensiva a exegese que pretendesse albergar, sob o manto da imunidade, os imo?veis incorporados ao patrimo?nio da pessoa juri?dica que na?o fossem destinados a? integralizac?a?o do capital subscrito, e sim a outro objetivo – como, no caso presente, em que se destina o valor excedente a? formac?a?o de reserva de capital.” (grifei)

Diante disso, é de se ver que nos casos em que o imóvel é transferido unicamente com a finalidade de integralizar o capital – ou seja, o imóvel passa a integrar apenas o capital social da pessoa jurídica –, aplica-se a imunidade, sendo inexigível o ITBI mesmo que exista divergência quanto ao valor do imóvel. 

O que tem se observado, contudo, é que a tese lá fixada tem sido interpretada de modo totalmente equivocado para justificar a cobrança do ITBI sobre a diferença do valor do imóvel tomado como parâmetro na integralização – que equivale ao valor do capital social integralizado – e o suposto valor de mercado. A título de exemplo, vejamos decisão recente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sobre o tema:

ADEQUAÇÃO – APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO – ITBI – INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL – PRETENDIDO O RECONHECIMENTO DE IMUNIDADE TRIBUTÁRIA (CF, ART. 156, §2º, INC. I) SOBRE O TOTAL DA OPERAÇÃO – IMPOSSIBILIDADE – IMUNIDADE RESTRITA AO VALOR DA COTA INTEGRALIZADA, DEVENDO INCIDIR ITBI SOBRE O VALOR EXCEDENTE – TESE ESTABELECIDA EM REPERCUSSÃO GERAL PELO COL. STF – RE 796376 (TEMA 796) – IRRELEVANTE O FATO DE NÃO TER SIDO CONSTITUÍDA RESERVA DE CAPITAL – AUSENTES AS RAZÕES PARA O DISTINGUISHING – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DEVOLVIDO AO RELATOR PARA REALIZAR O JUÍZO DE CONFORMIDADE, NOS TERMOS DO ART. 1.030, INCISO II, DO CPC, DE ACORDO COM O PRECEDENTE FIRMADO NO RESP Nº 1937821/SP (TEMA 1113) – JULGAMENTO EM CONFORMIDADE COM AS TESES ESTABELECIDAS PELO COL. STJ, UMA VEZ QUE O MUNICÍPIO REALIZOU O ARBITRAMENTO DO VALOR EXCEDENTE À INTEGRALIZAÇÃO, EM OBSERVÂNCIA AO ART. 148 DO CTN – TESE NÃO VIOLADA – ACÓRDÃO MANTIDO.” (TJSP. Apelação Cível 1008367-35.2021.8.26.0624. 15ª Câmara de Direito Público. Rel. Des. Amaro Thomé, julgado em 05 jun. 2023)

O que se espera é que decisões dessa natureza venham a ser reformadas pelo STF, por serem flagrantemente contrárias ao que foi decidido no julgamento do Tema 796 de Repercussão Geral.

No próximo artigo desta série procuraremos explicar, em breves linhas, as decisões proferidas nos poucos casos que chegaram à Corte Suprema após a fixação da tese. 

MARINA VIEIRA DE FIGUEIREDO – Consultora do ButtiniMoraes, atua como julgadora no Conselho Municipal de Tributos da Prefeitura de São Paulo (conselheira titular) e no Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo (juíza suplente). É professora dos cursos de mestrado e de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), bem como da pós-graduação da PUC-SP

Fonte: Jota

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