Opinião: Sobre a decadência do credito tributário no curso da ação penal

Por Fernando Guimarães e Mauro Tsé

Questão que nos parece interessante é a relativa à consequência da declaração judicial da decadência do crédito tributário, por sentença transitada em julgado prolatada em sede extrapenal, em demanda criminal em curso, decorrente de acusação de prática do delito capitulado no artigo 1º da Lei nº 8.137/90.

Precisamente esse o tema deste breve escrito: o efeito da coisa julgada e seu reflexo em ação penal cuja prova de materialidade delitiva fora desconstituída por decisão de mérito não mais sujeita a recurso, proferida nos autos de ação de execução fiscal. A peculiaridade da situação reside no fato de ter a decadência tributária sido reconhecida e declarada em momento posterior ao recebimento da denúncia, já no curso da persecução criminal.

Se o artigo 1º, caput, da Lei nº 8.137/90 dispõe que “constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório”, a decadência tributária há de fulminar, em nosso sentir, a tipicidade penal, justamente em razão da exclusão do seu próprio elemento normativo: o débito é extinto pela desconstituição do crédito tributário.

Ou seja, operando-se a decadência — a qual, segundo Hugo de Brito Machado, é “a extinção, pelo decurso do tempo, do direito potestativo da Fazenda Pública de efetuar o lançamento” [1] —, ainda que seu reconhecimento ocorra no curso da ação penal, a tipicidade antes caracterizada deixa de subsistir. E inexistindo tributo devido, não há a configuração do crime do artigo 1º da Lei nº 8.137/90.

Diferentemente da prescrição tributária, a decadência no Direito Tributário, tratada no inciso V do artigo 156 do Código Tributário Nacional, é a perda do direito de o Fisco constituir o crédito tributário por meio do lançamento, tendo em vista que o decurso do prazo decadencial leva ao perecimento do direito material.

Como o tributo devido, suprimido ou reduzido de forma fraudulenta é elemento normativo do tipo penal do artigo 1º da Lei nº 8.137/90, ocorrida a decadência tributária, não há falar, por conseguinte, em tipicidade penal exatamente em decorrência da exclusão desse mesmo elemento normativo.

E, inexistindo débito tributário, não há, logicamente, o crime do artigo 1º da Lei nº 8.137/90, uma vez que as condutas ali descritas exigem a existência de um tributo devido como substrato fático — a justa causa —, no qual se dá a conduta do agente. Nesse sentido, afirmam Helóisa Estellita e Aldo de Paula Junior [2]:

“Se o lançamento for anulado por norma individual e concreta de decadência (criada em processo administrativo ou judicial), o débito é extinto por nulidade na constituição da relação jurídica. Na ausência do lançamento, diante do reconhecimento pelo credor do transcurso do prazo decadencial, a questão se agrava porque, além da extinção do crédito (art. 156, V, do CTN), falta sua constituição, ou seja, falta a caracterização de um dos elementos do tipo penal tributário: tributo como objeto de uma relação jurídica. A norma individual e concreta da decadência atinge a validade do lançamento, retirando-o do sistema do Direito Positivo. Conseqüentemente, os reflexos penais desta retirada devem ser reconhecidos. Ora, se o tipo penal tributário toma como elemento normativo do tipo o termo tributo, que só se configura como objeto de uma relação jurídico-tributária convertida em linguagem jurídica competente (lançamento), e tendo sido a conversão fulminada pela decadência, é inviável a configuração do tipo penal tributário por ausência de um de seus elementos”.

Nesse exato sentido, os tribunais superiores já deliberaram ter o instituto da decadência tributária idoneidade para extinguir o crédito tributário, eliminando, portanto, a justa causa para a ação penal, pela impossibilidade de se configurar o crime de sonegação fiscal, caracterizando-se como uma causa de exclusão da tipicidade do artigo 1º da Lei nº 8.137/90 (STF — HC nº 84.555/RJ, relator ministro Cezar Peluso, julg. 7/8/2007, DJ 14/9/2007; STJ — REsp nº 789.506/CE, relatora ministra Laurita Vaz, julg. 25/4/2006, DJ 22/5/2006; HC nº 56.799/SP, relatora ministra Laurita Vaz, julg. 13/3/2007, DJ 16/4/2007; HC nº 77.986/MS, relator ministro Arnaldo Esteves Lima, julg. 13/9/2007, DJ 7/4/2008).

Nesse sentido, cabe ressaltar que o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 24, consagrando o entendimento de que, inexistindo tributo devido, não se caracteriza o crime tipificado no artigo 1º da Lei nº 8.137/90.

Frise-se, ainda, que não se está a falar, aqui, de prescrição do crédito tributário, que apenas retiraria da União a possibilidade de exigir o seu pagamento, mas de decadência, a qual fulmina a tipicidade, na medida em que impede ou torna sem efeito o próprio lançamento tributário.

Importante destacar, de resto, ser inteiramente descabido cogitar de eventual pagamento para que seja reconhecida a extinção da punibilidade, uma vez que, na hipótese de decadência, não mais subsiste o próprio crédito tributário. Ad argumentandum, ainda que o contribuinte tivesse a intenção de pagar o tributo cuja decadência já foi reconhecida, nem assim conseguiria proceder, vez que inexistiria débito junto à Receita Federal…

Não por outras razões, nossos tribunais superiores têm entendido que não se tipifica crime tributário em razão de ausência do elemento normativo, nos casos em que há reconhecimento administrativo e/ou judicial da extinção do crédito tributário, o que leva à conclusão lógica de que pouco importa se a decadência foi reconhecida antes ou após o lançamento tributário.

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[1] MACHADO, Hugo de Brito. Manual de Direito Tributário. Fls. 235/236. 2018.

[2] ESTELLITA, Heloísa; PAULA JUNIOR, Aldo de. Os efeitos da decadência do crédito nos crimes contra a ordem tributária In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; ELALI, André. Direito Penal Tributário. São Paulo: MP, 2005. p. 26.

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Fonte: Revista Consultor Jurídico

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