Deve-se tributar a renda distribuída aos sócios ou acionistas, os dividendos?

Por Fernando Facury Scaff

Deve-se ou não tributar a renda que é distribuída aos sócios ou acionistas, os chamados dividendos? É dito aos quatro ventos que em apenas dois países não existe tributação dos dividendos, no Brasil e na Estônia, informação que não tenho como conferir.

O fato é que, sobre este tema vem se instalando uma estranha controvérsia, pois a esquerda deseja tributar os dividendos, e a extrema direita, representada pelo governo Bolsonaro, até mesmo incluiu essa tributação no PL 2.337, encaminhado dia 25/06/21 pelo ministro da Economia à Câmara dos Deputados, propondo a modificação de diversos aspectos relativos ao Imposto de Renda, sobre o qual já fiz alguns comentários iniciais. O assim chamado centro (que nem sempre corresponde ao Centrão), aparenta reagir a mais este aumento da carga tributária.

O que está ocorrendo? Quem terá razão?

Afastemos o absurdo de tramitarem três propostas de reforma tributária ao mesmo tempo, sendo que uma não dialoga com a outra: (1) tributação do consumo (PEC 45 e PEC 110 — criação do IBS); (2) a unificação do Pis e da Cofins (PL 3887/20 — criação da CBS) e, (3) esta reforma da tributação sobre a renda (PL 2337/21).

Observando apenas esta última, e longe de querer esgotar a matéria, é necessário fazer algumas análises técnicas para melhor compreender o sistema de tributação da renda em nosso país.

No Brasil denominamos de imposto sobre a renda uma multiplicidade de incidências, que, em alguns países são legislações distintas, divididas entre a tributação sobre a renda das corporações (nosso IRPJ) e a tributação sobre a renda das pessoas naturais (nosso IRPF). Além disso, existem receitas que são tributadas exclusivamente na fonte, regras próprias para a tributação dos ganhos de capital, receitas que são isentas e diversos tipos de reduções da base de cálculo.

De certa maneira isso forma um sistema de tributação da renda, e que aparenta uma enorme complexidade, mas que nem sempre está presente, pois algumas válvulas de escape foram criadas ao longo do tempo para que pequenas e médias empresas possam sobreviver. Daí porque existem pelo menos três diferentes formas de apuração do IRPJ: (1) tributação pelo Simples, (2) pelo sistema de lucro presumido e (3) através do lucro real. O fato é que os três sistemas estão sob ataque da Receita Federal, além do que foi proposto pelo PL 2337/21.

Em apertada síntese, o que se busca em todos esses sistemas é apurar o lucro das empresas, que decorre de uma apuração das receitas menos as despesas, considerados alguns ajustes contábeis, e tributá-lo ao final. Logo, neste ponto se identifica um aspecto de importância central, que é a busca da identificação do lucro, para que, sobre ele, incida o imposto sobre a renda das pessoas jurídicas (IRPJ).

Se até aqui o caro leitor/leitora acompanhou, é necessário desdobrar alguns pontos para a perfeita compreensão da questão central a ser abordada: a tributação dos dividendos.

Primeiro: só existe lucro a ser distribuído se a empresa tiver tido lucro — meio óbvio isso, não? Se a empresa não tiver lucro, como distribuirá o que não tem? Portanto, tributação de dividendos (lucros distribuídos) parte do pressuposto da existência de lucro na empresa (lucros auferidos).

Segundo: é formalmente verdadeiro que os dividendos se constituem receita dos acionistas/sócios, e que isso muda a caixinha de análise, pois, se eles forem pessoas físicas (o que nem sempre ocorre, e complica ainda mais a proposta do governo Bolsonaro) sairemos da tributação das pessoas jurídicas (IRPJ) para a das pessoas físicas (IRPF). Essa é a explicação da Receita Federal quando diz que não se pode somar as alíquotas, pois o projeto baixa em 5% as alíquotas do IRPJ (lucro auferido pelas empresas) e cria uma incidência de 20% sobre a distribuição dos dividendos, que é uma incidência sobre as pessoas físicas (IRPF).

Terceiro: ocorre que a afirmação acima (2º ponto) é tão somente um jogo de palavras, pois se as empresas não tiverem auferido lucros, não haverá distribuição de lucros (1º ponto).

Logo, se o raciocínio até aqui apresentado estiver correto e fluido, passemos a outro ponto importantíssimo de análise.

Quarto: a tributação da renda das pessoas jurídicas no Brasil (IRPJ) tem dois componentes que devem ser destacados: (a) sua trajetória histórica, e (b) um tributo esquisito, que é o Pis/Cofins. Vamos a eles.

Comecemos pelo (a) aspecto histórico. Claro que existia IRPJ antes da Constituição de 1988. O que não existia eram duas figuras que distorcem e majoram essa incidência, tornando os cálculos meio nublados: (1) o Adicional do IRPJ (criado em dezembro de 1995 pela Lei 9.249/95), sem correção de seu valor desde 1996, o que prejudica os contribuintes, aumentando artificialmente a carga tributária; e (2) a CSLL — Contribuição Social dobre o Lucro Líquido (criada em dezembro de 88 pela Lei 7.689/88), que, por ter sido batizada de contribuição, aumentou a receita da União sem compartilhá-la com os Estados e Municípios.

Observemos agora a (b) tributação pelo Pis/Cofins, tecendo apenas dois comentários. Denominei-a (1) de esquisita porque incide sobre a receita bruta das empresas. Ora, receita bruta corresponde a (praticamente) tudo que entra no caixa da empresa, seja através da emissão de faturas, seja a receita financeira. Pedindo desculpas antecipadas aos eventuais doutos em direito tributário que estão lendo, pode-se afirmar, com alguma largueza conceitual, que essa incidência é quase uma tributação sobre o consumo, campo de incidência próprio dos Estados, através do ICMS. Isso tanto é verdadeiro, que as PECs 45 e 110, que visam reformar o sistema de tributação do consumo em nosso país, incorporam o PIS/Cofins nessa incidência (proposta da IBS), o que também é alegado pela Receita Federal ao patrocinar a unificação desses dois tributos através do PL 3887/20 (proposta de CBS).

Observe-se que o pagamento do Pis/Cofins ocorre antes mesmo da apuração do lucro, o que também distorce o mecanismo de sua apuração, pois as empresas são tributadas pela receita — o lucro só será apurado posteriormente, e aí então se poderá constatar se a empresa teve ou não lucro no período.

Além do que foi exposto sobre o PIS/Cofins, deve-se ainda observar seu (2) aspecto histórico, pois ambos existiam antes de 1988. O PIS, criado pela Lei Complementar 7/70, era de 0,15% do faturamento das empresas, e o antecessor da Cofins, o Finsocial, foi instituído pelo Decreto-lei 1.940/82, era de 0,5% sobre o faturamento das empresas. Para tornar curta uma longa história, hoje a somatória de ambos incide na proporção de 3,65% sobre o faturamento das empresas (quando estas não tomam créditos, isto é, pelo método da cumulatividade) ou na proporção de 9,25% sobre o faturamento (sendo permitido o uso de alguns créditos, sob o método não-cumulativo).

O heroico leitor/leitora perguntará: e o que tudo isso tem a ver com a questão da tributação dos dividendos, que são os lucros distribuídos?

A resposta é simples: o Brasil optou pelo aumento da carga tributária das empresas sob duas modalidades: (1) aumentando a tributação sobre a renda das pessoas jurídicas através do (a) Adicional de Imposto de Renda e (b) da CSLL; e (2) aumentando a tributação sobre o consumo, através do Pis/Cofins, pago antecipadamente à apuração do lucro das empresas.

Logo, a majoração da tributação do lucro das empresas foi compensada com a desoneração da tributação da distribuição dos lucros aos sócios/acionistas.

E por qual motivo isso ocorreu? Porque facilita a arrecadação e simplifica todo o procedimento de apuração do lucro distribuído. Isso foi consolidado através da Lei 9.294, de 1995, que isentou a tributação de dividendos. Antes disso a fiscalização necessitava identificar mecanismos muito comuns de DDL – Distribuição Disfarçada de Lucros, verdadeiros desvios de arrecadação, pelos quais as empresas mascaravam a distribuição dos lucros, sem os oferecer à tributação. Exemplos: pagamento de planos de saúde ou aquisição de veículos para os sócios, sem que tais benefícios fossem oferecidos à tributação pelo IRPF.

A proposta atual, apresentada pelo governo Bolsonaro, de tributar os dividendos em 20%, fará com que esse tipo de análise fiscal volte a ser necessária, o que se evidencia no PL 2337/21 que traz incontáveis normas a respeito. Porém, isso será feito pelo sistema de inteligência artificial da Receita Federal? Dificilmente funcionará de modo adequado, sendo necessário um batalhão de servidores públicos para realizar esta tarefa a contento – e todos sabemos que o contingente de servidores da Receita Federal tem minguado ano a ano.

Para concluir, retornemos à pergunta inicial: deve-se ou não tributar a renda que é distribuída aos sócios ou acionistas, os chamados dividendos? Resposta: Sim e não.

Sim, desde que reduzida a carga tributária incidente sobre o lucro auferido pelas empresas, considerando todos esses penduricalhos onerosos referidos (Adicional de IR, CSLL e as incidências de Pis e Cofins), sem majorar a carga tributária total.

Não, pois o sistema atualmente vigente já tributa fortemente, de modo direto e indireto, o lucro auferido pelas empresas, descartando a análise dos lucros distribuídos aos sócios/acionistas. Recorde-se: só se distribui o que se tem, logo, a distribuição foi previamente tributada, pela carga atualmente aplicada aos lucros auferidos pelas empresas.

O que será injusto — e é o que pretende o governo Bolsonaro — é manter a carga tributária sobre o lucro auferido pelas empresas (IRPJ e penduricalhos), e ainda criar nova incidência de 20% sobre a distribuição desse lucro — sobre os dividendos (IRPF). Isso gerará um sem-número de problemas, a serem analisados em outro texto.

Peço desculpas aos leitores/leitoras pela simplificação na exposição de todo esse sistema, que comporta incontáveis variáveis, mas optei pelo didatismo. Espero ter conseguido o intento.

Conjur

Galeria de Imagens
Outras Notícias
O contrato de vesting sob o prisma do Direito do Trabalho
STJ aplica Tema 1182 a casos sobre tributação de subvenções de ICMS
STJ: entidades não podem figurar no polo passivo de ações envolvendo contribuições
Carf: despesa com personagem em roupas pode ser deduzida do IRPJ e da CSLL
STJ define regras para instituições financeiras em caso de roubo ou furto de celulares
Carf permite que multas aplicadas após leniência sejam deduzidas do IRPJ e CSLL
Indisponibilidade de bens com a reforma da Lei de Improbidade Administrativa
Carf permite crédito de PIS/Cofins no armazenamento e distribuição de combustíveis
Carf mantém IRRF sobre remessas de juros ao exterior
Publicada Instrução Normativa que atualiza as normas gerais de tributação previdenciária
CARF decide sobre incidência de contribuição em caso de pejotização
Repetitivo vai definir se ISS compõe base de cálculo do IRPJ e da CSLL apurados pelo lucro presumido
STF mantém entendimento sobre fim de eficácia de decisões definitivas em matéria tributária
Sem estar na ação, empresa do mesmo grupo econômico não pode pagar custas
Supremo mantém decisão sobre quebra da coisa julgada em matéria tributária
Receita Federal abre prazo de autorregularização para empresas que utilizaram indevidamente as subvenções para investimento
STJ veda crédito de PIS/Cofins sobre frete de veículos para revenda
Tributos restituídos integram base de cálculo de IRPJ e CSLL, decide STJ
Reforma tributária: quando o ITCMD poderá ser exigido sobre bens no exterior?
Receita lança nova fase do Litígio Zero a partir de 1º de abril
Trusts: finalmente a legislação brasileira tocou no nome deles