IPI na revenda de produtos importados: o risco de relativização da coisa julgada em relação às sentenças em sentido contrário

O recente julgamento do RE 946.648/SC, pelo qual do STF firmou o entendimento objeto da Tema 906 da Repercussão Geral, no sentido de que “é constitucional a incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI no desembaraço aduaneiro de bem industrializado e na saída do estabelecimento importador para comercialização no mercado interno”, fez surgir no meio empresarial afetado pela decisão sérias dúvidas sobre a eficácia de decisões já transitadas em julgado em que tenha restado definido entendimento contrário – ou seja, de que seria indevida a segunda incidência do IPI, na revenda no mercado interno do produto importado do exterior que não tenha sofrido industrialização no estabelecimento do importador.

A principal preocupação dos contribuintes diz respeito à eficácia de decisões que lhes tenham favorecido, já transitadas em julgado, algumas há mais de 2 (dois) anos, e quanto à possibilidade de relativização da coisa julgada.

A “coisa julgada” é o instituto que torna imutável a decisão de mérito contra a qual não caiba mais recursos (CPC, art. 502). O instituto visa atribuir segurança jurídica às relações que tenham sido submetidas ao crivo do Poder Judiciário e que tenham sido por ele decididas. A coisa julgada é a tal ponto relevante para a higidez do sistema jurídico, que foi elevada a garantia constitucional pelo art. 5º, inciso XXXVI da CF/88, que prescreve que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Entretanto, como ocorre em qualquer caso, não se trata de garantia absoluta, e o próprio sistema jurídico-processual prevê os casos e as condições em que a coisa jugada material poderá ser desconstituída ou perder sua eficácia.

Em regra, no âmbito do processo civil, a eficácia de decisão transitada em julgado pode ser afastada ou relativizada por três vias: (i) primeira, por meio da Ação Rescisória (CPC, art. 966 e seguintes); (ii) segunda, por meio da chamada “querela nulitattis” (CPC, art. 19, inciso I); (iii) terceira, nos casos de relação jurídica de trato continuado, quando sobrevier a modificação no estado de fato ou de direito (CPC, art. 505, inciso I).

i. Ação Rescisória:

São poucos e restritos os casos de cabimento de ação rescisória para desconstituir decisão transitada em julgado, tal como previsto nos incisos do art. 966 do CPC.

Da análise das hipóteses de cabimento previstas no referido dispositivo, parece-nos que a única em que se poderia basear ação rescisória para desconstituir decisão transitada em julgado que reconheceu impossibilidade de incidência do IPI na saída interna de produto importado do exterior que não foi submetido a qualquer industrialização no estabelecimento do importador, seria aquela hipótese prevista no inciso V: “violar manifestamente norma jurídica”.

Entretanto, as ações rescisórias intentadas pela Fazenda Nacional com fundamento nesse dispositivo, em casos que trataram da mesma questão de fundo, encontraram óbice no entendimento firmado na Súmula 343 do STF, segundo o qual “não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.

Porém, há que se registrar a existência de muitos precedentes, no âmbito do STF, afastando a incidência da Súmula 343 quando se tratar de questão constitucional. Senão, confiram-se alguns:

AÇÃO RESCISÓRIA. SERVIDOR MILITAR. ISONOMIA. ART. 37, X, DA CONSTITUÇÃO. NÃO INCIDÊNCIA DA SÚMULA 343/STF. ATENDIMENTO DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DA VIA. RESJUSTE DE 28,86% DEVE SER CONCEDIDO A TODOS, SOB PENA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE. EXTENÇÃO AOS MILITARES QUE RECEBERAM AUMENTO VARIÁVEL INFERIOR AO PERCENTUAL. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

 I – O enunciado da Súmula 343/STF não configura a hipótese dos autos, uma vez que sua aplicação não abrange intepretação de texto constitucional, como na espécie.

[…]

(AgRg em AR 1.981 – Relator: Ministro Ricardo Lewandowski – DJE 01.03.2018)

Embargos de Declaração em Recurso Extraordinário. 2. Julgamento remetido ao Plenário pela Segunda Turma. Conhecimento. 3. É possível ao Plenário apreciar embargos de declaração opostos contra acórdão prolatado por órgão fracionário, quando o processo foi remetido pela Turma originalmente competente. Maioria. 4. Ação Rescisória. Matéria Constitucional. Inaplicabilidade da Súmula 343/STF. 5. A manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da intepretação adotada pelo STF revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. 6. Cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição constitucional, ainda que a decisão rescindenda tenha se baseado em interpretação controvertida ou seja anterior à orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal. 7. Embargos de Declaração rejeitados, mantida a conclusão da Segunda Turma para que o Tribunal a quo aprecie a ação rescisória.

(ED em RE 328.812 – Plenário – Relator: Ministro Gilmar Mendes – DJE 02.05.2008)

Portanto, diante do entendimento ilustrado nos precedentes acima transcritos, deve-se considerar possível que, a partir do julgamento do RE 946.648/SC, passem a ser admitidas ações rescisórias que tenham por objeto a desconstituição de decisões transitadas em julgado que tenham decidido a questão em análise favoravelmente aos contribuintes.

ii. Querela Nullitatis Insanabilis:

A chamada querela nullitatis insanabilis nada mais é do que uma ação de cunho declaratório e constitutivo negativo que tem por objeto declarar que a decisão já transitada em julgado foi proferida em processo no qual ocorreu alguma nulidade insanável – como, por exemplo, a falta da citação do réu ou de algum litisconsorte.

Como não se trata de hipótese aplicável ao caso ora em análise, não há necessidade de maiores digressões sobre o tema.

iii. Relação jurídica de trato continuado e superveniência de modificação no estado de fato ou de direito:

Há muito se discute se nas relações jurídico-tributárias, que são caracterizadas, em sua maioria, como relações jurídicas de trato continuado, a superveniência de decisão do STF, em controle difuso ou concentrado de constitucionalidade, admitiria a revisão das decisões transitadas em julgado com base em entendimento diverso, por força do que prescreve o art. 505, inciso I do CPC:

Art. 505 – Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo:

I – se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença.

Na década de 1960 o STF editou a Súmula 239/STF, firmando o entendimento de que “decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores”.

Entretanto, há controvérsia quanto à aplicação dessa súmula aos casos de decisões que não tiveram por objeto um “determinado exercício”, mas sim, a própria relação jurídico tributária estabelecida entre sujeito ativo e sujeito passivo (ARE 861.473, Relator Ministro Roberto Barroso, DJe 25.02.2015; AgRg no AI 791.071, Relator Ministro Dias Toffoli, DJe 18.03.2014; ED no ARE 704.846, Relator Ministro Dias Toffoli, DJe 08.08.2013).

Tanto é assim, que em 2016 o STF decidiu, no RE 955.227/BA, que há repercussão geral quanto à definição dos efeitos das decisões do Tribunal em controle difuso de constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relações tributária de trato continuado, conforme abaixo:

 TRIBUTÁRIA. EFICÁCIA DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM CONTROLE DIFUSO. COISA JULGADA. EFEITOS FUTUROS. RELAÇÕES DE TRATO CONTINUADO. PRESENÇA DE REPERCUSSÃO GERAL.

1. Constitui questão constitucional saber se e como as decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso fazem cessar os efeitos futuros da coisa julgada em matéria tributária, quando a sentença tiver se baseado na constitucionalidade ou inconstitucionalidade do tributo. 2. Repercussão Geral reconhecida.

(RE 955.227 RG – Relator: Ministro Roberto Barroso – DJe 26.04.2016)

Embora o mérito ainda não tenha sido julgado pelo Plenário do STF, no referido processo o então Procurador Geral da República manifestou-se favoravelmente à pretensão da Fazenda Nacional, e propôs seja firmada, quanto ao tema 885 da repercussão geral, a tese de que “a coisa julgada em matéria tributária, quando derivada de relação jurídica de trato continuado, perde sua eficácia no momento da publicação do acórdão do Supremo Tribunal Federal contrário ao sentido da sentença individual, ainda que exarado no âmbito do controle difuso de constitucionalidade”.

Considerando a linha dos precedentes do STF quanto ao tema, deve-se considerar possível que o Tribunal venha a firmar tese favorável à pretensão da Fazenda Nacional, para definir o entendimento de que, nas relações jurídicas de trato continuado, sobrevindo modificação no estado de direito – caracterizada pela decisão do STF em controle concentrado ou difuso de constitucionalidade -, a coisa julgada perderia sua eficácia.

Ocorre que além de decidir quanto aos efeitos de suas decisões sobre a eficácia das decisões transitadas em julgado, o STF também deverá definir: (i) a partir de que momento a eficácia da coisa julgada seria afastada – se da decisão do Supremo, da sua publicação ou do seu trânsito em julgado; (ii) se a perda da eficácia seria automática ou dependeria de alguma iniciativa da Fazenda Nacional; (iii) se a perda da eficácia permitiria atribuir efeitos retrospectivos aptos a autorizarem a Fazenda Nacional a cobrar o tributo que deixou de ser recolhido enquanto o contribuinte permaneceu favorecido pela decisão transitada em julgado que perdeu sua eficácia.

Quanto o primeiro ponto – a partir de que momento a eficácia da coisa julgada seria afastada -, parece-nos que, conforme veremos ao tratar do próximo ponto, o afastamento da eficácia da coisa julgada dependeria da propositura de ação rescisória. Portanto, a perda de seus efeitos não ocorreria nem no momento da decisão do STF, nem da sua publicação, tampouco do trânsito em julgado, mas sim, a partir da superveniência de decisão, em ação rescisória, proposta com fundamento no art. 966, inciso V do CPC.

Quanto ao segundo ponto – se a perda da eficácia seria automática ou dependeria de alguma iniciativa da Fazenda Nacional -, o STF já definiu, ao julgar o Tema 733 da Repercussão Geral, o seguinte:

“Tema 733 – A decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Para que tal ocorra, será indispensável a interposição do recurso próprio ou, se for o caso, a propositura da ação rescisória própria, nos termos do art. 485 do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (art. 495)”

Note-se que a tese definida no Tema 733, acima transcrita, faz expressa referência ao prazo decadencial para propositura de ação rescisória, que é de 2 (dois) anos contados do trânsito em julgado da decisão a ser rescindida.

Embora, à primeira vista, se possa vislumbrar uma possível celeuma em relação às decisões transitadas em julgado há mais de 2 (dois) anos, que aparentemente não seriam passíveis de rescisão, a verdade é que no acórdão que julgou o RE 730.462/SP, em que ficou definida essa tese, houve expressa menção quanto a esse prazo ser contado a partir do trânsito em julgado da decisão do STF, bem como quanto à excepcionalidade da eficácia executiva, para o futuro, de sentença proferida em caso concreto que trate de relações jurídicas de trato continuado. Confira-se:

“[…] 5. Isso se aplica também às sentenças judiciais anteriores. Sobrevindo decisão em ação de controle concentrado declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo, nem por isso se opera a automática reforma ou rescisão das sentenças anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Conforme asseverado, o efeito executivo da declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade deriva da decisão do STF, não atingindo, consequentemente, atos ou sentenças anteriores, ainda que inconstitucionais. Para desfazer as sentenças anteriores será indispensável ou a interposição do recurso próprio (se cabível), ou, tendo ocorrido o trânsito em julgado, a propositura da ação rescisória, nos termos do art. 485, V, do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, art. 495). Ressalva-se desse entendimento, quanto à indispensabilidade da ação rescisória, a questão relacionada à execução de efeitos futuros da sentença proferida em caso concreto, notadamente quando decide sobre relações jurídicas de trato continuado, tema que aqui não se cogita. Interessante notar que o novo Código de Processo Civil (Lei 13.105, de 16.3.2015), com vigência a partir de um ano de sua publicação, traz disposição explícita afirmando que, em hipóteses com a aqui focada, ‘caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal’ (art. 525, § 12 e art. 535, § 8º).[…]” [GRIFAMOS]

Enfim, quanto ao terceiro ponto – se a perda da eficácia permitiria atribuir efeitos retrospectivos aptos a autorizarem a Fazenda Nacional a cobrar o tributo que deixou de ser recolhido enquanto o contribuinte permaneceu favorecido pela decisão transitada em julgado que perdeu sua eficácia – parece-nos que a única forma de compatibilizar a possibilidade de relativização da coisa julgada ao mínimo de segurança jurídica necessária para manter a higidez do sistema jurídico seria impedir a perda de eficácia se operasse com efeitos ex nunc, de modo a prestigiar a soberania da coisa julgada, ao menos enquanto se manteve eficaz.

Nota-se, portanto, que se por um lado o julgamento pelo STF do RE 946.648/SC (Tema 906 RG) encerrou uma discussão que se arrastava há anos no Poder Judiciário, por outro lado abriu uma gama de novas controvérsias que clamam por urgente solução, sob pena de manter os contribuintes sujeitos à incerteza e à insegurança jurídica.

Por Leandro Guerrero Guimarães

Tributario.com.br


Galeria de Imagens
Outras Notícias
O contrato de vesting sob o prisma do Direito do Trabalho
STJ aplica Tema 1182 a casos sobre tributação de subvenções de ICMS
STJ: entidades não podem figurar no polo passivo de ações envolvendo contribuições
Carf: despesa com personagem em roupas pode ser deduzida do IRPJ e da CSLL
STJ define regras para instituições financeiras em caso de roubo ou furto de celulares
Carf permite que multas aplicadas após leniência sejam deduzidas do IRPJ e CSLL
Indisponibilidade de bens com a reforma da Lei de Improbidade Administrativa
Carf permite crédito de PIS/Cofins no armazenamento e distribuição de combustíveis
Carf mantém IRRF sobre remessas de juros ao exterior
Publicada Instrução Normativa que atualiza as normas gerais de tributação previdenciária
CARF decide sobre incidência de contribuição em caso de pejotização
Repetitivo vai definir se ISS compõe base de cálculo do IRPJ e da CSLL apurados pelo lucro presumido
STF mantém entendimento sobre fim de eficácia de decisões definitivas em matéria tributária
Sem estar na ação, empresa do mesmo grupo econômico não pode pagar custas
Supremo mantém decisão sobre quebra da coisa julgada em matéria tributária
Receita Federal abre prazo de autorregularização para empresas que utilizaram indevidamente as subvenções para investimento
STJ veda crédito de PIS/Cofins sobre frete de veículos para revenda
Tributos restituídos integram base de cálculo de IRPJ e CSLL, decide STJ
Reforma tributária: quando o ITCMD poderá ser exigido sobre bens no exterior?
Receita lança nova fase do Litígio Zero a partir de 1º de abril
Trusts: finalmente a legislação brasileira tocou no nome deles