A LC 214/25 e o novo paradigma para a responsabilidade tributária de terceiros

Da responsabilidade-armadilha à responsabilidade-conformidade

A Lei Complementar 214/2025, que regulamenta a reforma tributária, inovou no tratamento da responsabilidade de terceiros. Se estes antes estavam sujeitos a responder pela mera ocupação de uma posição, ou genericamente por atos ilícitos (sem saber ao certo quais), e pela totalidade dos tributos em aberto, agora há notável especificação das condutas que ensejam a responsabilidade e sua vinculação à reparação de prejuízo causado ao Estado (em lugar de penalidade sempre igual a 100% dos tributos em aberto).

De fato, o artigo 24 da lei, diferentemente dos lacônicos artigos 134 e 135 do CTN, traz longo rol de condutas bastante específicas que causam prejuízo ao fisco e geram responsabilidade.

Os incisos I, II e VI contêm previsões que responsabilizam participantes de operação sem documento fiscal idôneo; o inciso IV o faz em relação a quem desenvolve ou fornece programas que se prestem a descumprir a legislação tributária, assim como o inciso V contempla quem oculta a ocorrência ou o valor da operação, ou abusa da personalidade jurídica para descumprir obrigações tributárias.

A lógica é singela: participar de ilícito por alguma destas condutas implica concorrer para o dano ao fisco (inadimplemento) e poder ser chamado a por ele responder. O dano, medida da indenização, passa a ser a métrica da responsabilidade, em oposição à sanção punitiva, que reclama considerações de culpabilidade.

O raciocínio reparatório é acolhido claramente pelo artigo 24, §2º, ao dispor que a responsabilidade dos que ocultam o valor da operação “restringe-se ao valor ocultado”. Ora, se a ocultação do valor da operação for parcial, sob a óptica estritamente ressarcitória, não poderá o agente responder pelo tributo não pago em relação à parte declarada da operação, pois aí não há dano.

O mesmo se estende às demais previsões em razão do seu próprio conteúdo. Se a responsabilidade se dá em razão do recebimento ou do transporte de mercadorias sem nota fiscal, apenas se deve arcar com o tributo relativo a estas e não com a parte acobertada pelos documentos fiscais. Também na hipótese de confusão patrimonial deve responder o sócio, e.g., até o montante das despesas pessoais pagas pelo ente moral.

Além disso, superando expressamente o entendimento fazendário[1] de que a mera existência do “grupo econômico” atrairia a responsabilidade das pessoas jurídicas envolvidas, afastou-se a responsabilização pela “mera existência de grupo econômico quando inexistente qualquer ação ou omissão que se enquadre no disposto no inciso V do caput deste artigo”.

Mais uma vez, exigiu-se a prática de determinados ilícitos que, no caso concreto, provocam “descumprimento de obrigações tributárias” e, consequente agravo ao patrimônio estatal. Rechaçou-se, pois, a lógica da responsabilidade objetiva pela mera ocupação de certas posições.

Por fim, no que atine às plataformas digitais, além de melhor conformar sua caracterização, atrelou-se a responsabilidade solidária ao prejuízo pelo descumprimento de certas obrigações.

Se a plataforma assegurar que as vendas se deem sempre mediante registro em documento fiscal eletrônico (artigo 22, II, c) e informar as operações ao fisco ou ao meio de pagamento para fins de split payment (§§ 5º e 8º do mesmo art. 22), não responderá.

Estes deveres de colaboração são, em princípio, factíveis e, assim, válidos, pois, tratando-se de plataforma por meio da qual a venda é realizada, possuirá as informações da operação, bem como poderá condicionar sua efetivação à emissão da nota fiscal. A omissão em cooperar com o fisco concorre para o não pagamento do tributo e, consumado o prejuízo, pode o terceiro ser chamado à responsabilidade.

Vetou-se, portanto, a anterior pretensão estadual de, pela simples condição de marketplace, impor solidariedade[2], sem facultar à plataforma agir conforme a lei e evitar a responsabilidade.

De resto, previu-se também substituição tributária do fornecedor domiciliado no exterior por parte do marketplace (artigo 22, I). Apenas o intermediário recolherá o tributo, de modo que, ciente previamente desta obrigação, será a plataforma tributada, mas não suportará seus ônus econômicos, pois deduzirá do pagamento ao vendedor o IBS e a CBS, que arcará definitivamente com eles.

Estas importantes modificações inauguram um paradigma legislativo verdadeiramente novo e estão em linha com a necessidade de um fundamento constitucional idôneo e autônomo para que o Estado cobre valores compulsoriamente de qualquer pessoa, contribuinte ou terceiro.

Em outros termos, o fato de haver autorização constitucional para tributar o contribuinte não necessariamente justifica a cobrança contra o terceiro, pessoa autônoma perante o Estado, e não alter ego do primeiro[3].

O fundamento legítimo que se busca, destaque-se, não pode ser o sancionatório defendido pela doutrina[4]. Se a responsabilidade do terceiro pelo tributo não pago do contribuinte fosse mera sanção de ato ilícito, haveria única pena-padrão, sempre de 100% da exação não paga para todas as condutas, pessoas e circunstâncias, o que não se concilia com o comando constitucional da individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CF).

A Constituição, contudo, prevê duas outras vias para exigir recursos compulsoriamente de particulares, que perfeitamente dão conta do fenômeno da responsabilidade de terceiros:[5]:

1. ressarcimento ao Estado por prejuízos causados culposamente pelo terceiro em razão de ato ilícito (com evidente paralelismo entre prejuízo gerado pelo ato ilícito, o inadimplemento, e responsabilidade pelo tributo); e

2. tributação excepcional e temporária do terceiro como forma de mediatamente tributar o contribuinte (pense-se na substituição tributária ou nas sucessões, em que pretende o legislador que o contribuinte suporte finalmente a tributação, ainda que através do terceiro);

Fora destas hipóteses, é proscrita a responsabilização de terceiros, pois se baseará na mera imposição legal de um seguro em benefício do Estado, uma espécie de responsabilidade objetiva estatal às avessas, não tolerada pela Carta Maior[6].

A mera condição de sócio, administrador, membro de “grupo econômico” ou plataforma de intermediação, se dissociada das circunstâncias descritas nos itens 1 e 2, não a autoriza.

Como demonstrado, a redação da LC 214 reverencia estes parâmetros e bem densifica os requisitos postos em cada caso, salvo pontuais hipóteses ora não analisadas.

Combate-se o caráter aleatório de que podia revestir-se a responsabilidade de terceiros anteriormente, dependente não raro de mero fato do contribuinte (pagamento) e enfoca-se a conduta de quem é chamado a responder.

Reforça-se a segurança jurídica como possibilidade de autodeterminação[7], pois a responsabilidade do terceiro passa a depender do bom ou mau uso de sua liberdade à luz das hipóteses previstas em lei.

Com efeito, se a responsabilidade advier da prática de condutas específicas que causam prejuízo ao fisco, abre-se a possibilidade de adotar o comportamento lícito alternativo e não responder; se vincula-se à ciência prévia de que o terceiro será tributado no lugar de outrem em certas operações, viabilizam-se precauções negociais que permitem a transferência do tributo.

Ganha-se duplamente. O fisco se beneficia da boa conduta do contribuinte induzida pela conformidade do terceiro; e este terá a chance de agir em acordo com a lei e colaborar com o fisco para evitar sua responsabilidade pessoal e definitiva, não sendo surpreendido por responsabilização que não podia prevenir. Troca-se a responsabilidade-armadilha pela responsabilidade-conformidade.

Espera-se que este novo e retumbante paradigma legislativo de 2025 contribua para reler todo o instituto da responsabilidade de terceiros de modo mais consentâneo com os padrões normativos superiores, criando um novo marco de previsibilidade na relação entre terceiros e fisco.

[1] Parecer Normativo Cosit 4/2018. Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=97210

[2] BARRETO, Paulo Ayres. “Limites normativos à responsabilidade tributárias das operadoras de marketplace”. Revista de Direito Tributário atual, n. 45, 2020. Disponível em: https://ibdt.org.br/RDTA/45-2020/limites-normativos-a-responsabilidade-tributaria-das-operadoras-de-marketplace/.

[3] FREIRE, André Borges Coelho de Miranda. Responsabilidade tributária de terceiros: natureza, regime e limites. 2024. 309 f. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2024. Orientador: Humberto Bergmann Ávila.

[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 25ª ed., São Paulo: Saraiva, 2013, p. 134.

[5] cf. nota 2.

[6] Ibid.

[7] ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria da Segurança Jurídica. 7. Ed. São Paulo: Malheiros, 2025, p. 238.

Por André Borges Coelho de Miranda Freire

Fonte: JOTA


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