Por Sérgio André Rocha
Em uma coluna recente, escrevi sobre a evolução da teoria tributária brasileira considerando as diferentes posições sobre os pontos de partida do Sistema Tributário Nacional. Já tratei deste tema em meu livro “Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro”. [1]
Creio ser possível estabelecer como premissa que um dos pilares da teoria tributária nacional tradicional, que se desenvolve a partir da década de sessenta e ainda nos parece majoritária no Brasil, é uma interpretação do princípio da legalidade que teria como consequência:
a exigência de densidade normativa e fechamento conceitual, que limitaria a capacidade de conformação do intérprete e se materializaria no chamado “princípio da tipicidade”;
a vedação da delegação de competências legislativas em matéria tributária, do Poder Legislativo para o Poder Executivo; e
a vedação da consideração econômica dos fatos realizados pelos contribuintes, em contraposição às formas jurídicas de Direito Privado adotadas pelas partes.
Já nos posicionamos em sentido oposto a todos esses pontos. Vimos sustentando, por exemplo, que a delegação legislativa não encontra vedação em matéria tributária, tendo como condição principal que as circunstâncias da delegação de competência estejam previstas em lei. [2]
De outra parte, há muitos anos defendemos que o princípio da tipicidade, como exigência de fechamento conceitual, simplesmente não existe. [3] Por fim, acredito que os limites à economia tributária são encontrados, de fato, na consideração econômica dos atos e negócios jurídicos praticados pelos contribuintes.
De mesma forma, ao que tudo indica, a interpretação mais recente do princípio da legalidade pelo STF parece alinhado à posição que vimos sustentando, podendo-se citar como exemplo as decisões proferidas na ADI nº 4.397 e no Recurso Extraordinário nº 677.725 (Fator Acidentário de Prevenção), no Recurso Extraordinário nº 1.043.313 (PIS e Cofins Receitas Financeiras), nas ADIs 4.697 e 4.762 e Recurso Extraordinário nº 704.292 (Contribuições de interesse das categorias profissionais ou econômicas) e no Recurso Extraordinário nº 838.284 (Taxa de Anotação de Responsabilidade Técnica).
Nosso propósito neste texto, contudo, não é rever nossas posições sobre o princípio da legalidade, nem analisar como o mesmo vem sendo interpretado pelo Supremo Tribunal Federal. O foco deste breve artigo é examinar como a posição de nossa doutrina tributária tradicional sobre o princípio da legalidade foi posta em xeque completamente pela edição da Lei nº 14.596/2023, que veiculou as novas regras brasileiras de preços de transferência.
Uma primeira dimensão que a doutrina tradicional atribui ao princípio da legalidade, e a seu suposto irmão, o princípio da tipicidade — ou “legalidade substantiva — é a exigência de que os textos normativos tributários tenham uma certa densidade normativa. Como leciona o professor Roque Antonio Carrazza, desta perspectiva, o princípio da tipicidade demandaria que o tipo tributário fosse “um conceito fechado, seguro, exato, rígido, preciso e reforçador da segurança jurídica”. [4]
Quando analisamos a Lei nº 14.596/2023, rapidamente concluímos que o legislador não foi econômico no uso de conceitos indeterminados e expressões abertas, as quais não se assemelham nem um pouco aos conceitos fechados, exatos, rígidos e precisos.
Veja-se, por exemplo, o disposto no artigo 8º da Lei nº 14.596/2023:
“Art. 8º Para fins do disposto nesta Lei, quando se concluir que partes não relacionadas, agindo em circunstâncias comparáveis e comportando-se de maneira comercialmente racional, consideradas as opções realisticamente disponíveis para cada uma das partes, não teriam realizado a transação controlada conforme havia sido delineada, tendo em vista a operação em sua totalidade, a transação ou a série de transações controladas poderá ser desconsiderada ou substituída por uma transação alternativa, com o objetivo de determinar os termos e as condições que seriam estabelecidos por partes não relacionadas em circunstâncias comparáveis e agindo de maneira comercialmente racional.” (destaques nossos)
Mesmo que consideremos as regras sobre delineamento da transação controlada, previstas na própria Lei nº 14.596/2023 e na Instrução Normativa nº 2.161/2023 que a regulamentou, notaremos que as expressões “comportando-se de maneira comercialmente racional”, “opções realisticamente disponíveis” e “agindo de maneira comercialmente racional” são indeterminadas, tendo uma zona de penumbra que permite ao intérprete/aplicador uma certa liberdade de conformação.
Outro aspecto marcante da lei é a quantidade de delegações legislativas para a Secretaria da Receita Federal. Basta assinalarmos que a previsão de “medidas de simplificação” (artigo 37) e a disciplina do “processo de consulta específico em matéria de preços de transferência” (artigo 38) foram delegados à Receita Federal.
No caso particular do “processo de consulta específico em matéria de preços de transferência”, rebatizado de “Acordo de Precificação Antecipada Unilateral” na minuta de Instrução Normativa apresentada para comentários pela Receita Federal, a delegação é ainda mais interessante, pois se transferiu para as autoridades fiscais a própria decisão de instituir tal acordo. Veja-se a redação do caput do mencionado artigo 38:
“Art. 38. A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil poderá instituir processo de consulta específico a respeito da metodologia a ser utilizada pelo contribuinte para o cumprimento do princípio previsto no art. 2º desta Lei em relação a transações controladas futuras e estabelecer os requisitos necessários à solicitação e ao atendimento da consulta.” (destaque nosso)
São diversos os dispositivos da Lei nº 14.596/23 que delegam à Secretaria da Receita Federal competência para regulamentar o disposto na lei, de forma integrativa, podendo-se mencionar o artigo 11, § 4º, o artigo 13, §§ 7º e 8º, o artigo 14, o artigo 16, § 5º, o artigo 18, § 2º, entre muitos outros.
Nada obstante, o aspecto que nos parece mais marcante da lei é como ela incorpora de forma inquestionável a consideração econômica das transações controladas, relegando a um absoluto segundo plano sua formalização jurídica. Nesse sentido, vejamos, por exemplo, o artigo 7º da Lei nº 14.596/23:
“Art. 7º O delineamento da transação controlada a que se refere o inciso I do caput do art. 6º desta Lei será efetuado com fundamento na análise dos fatos e das circunstâncias da transação e das evidências da conduta efetiva das partes, com vistas a identificar as relações comerciais e financeiras entre as partes relacionadas e as características economicamente relevantes associadas a essas relações, considerados, ainda:
I – os termos contratuais da transação, que derivam tanto dos documentos e dos contratos formalizados como das evidências da conduta efetiva das partes;
II – as funções desempenhadas pelas partes da transação, considerados os ativos utilizados e os riscos economicamente significativos assumidos;
III – as características específicas dos bens, direitos ou serviços objeto da transação controlada;
IV – as circunstâncias econômicas das partes e do mercado em que operam; e
V – as estratégias de negócios e outras características consideradas economicamente relevantes.
1º No delineamento da transação controlada, serão consideradas as opções realisticamente disponíveis para cada uma das partes da transação controlada, de modo a avaliar a existência de outras opções que poderiam ter gerado condições mais vantajosas para qualquer uma das partes e que teriam sido adotadas caso a transação tivesse sido realizada entre partes não relacionadas, inclusive a não realização da transação.
2º Na hipótese em que as características economicamente relevantes da transação controlada identificadas nos contratos formalizados e nos documentos apresentados, inclusive na documentação de que trata o art. 34 desta Lei, divergirem daquelas verificadas a partir da análise dos fatos, das circunstâncias e das evidências da conduta efetiva das partes, a transação controlada será delineada, para fins do disposto nesta Lei, com fundamento nos fatos, nas circunstâncias e nas evidências da conduta efetiva das partes. […].” (destaques nossos)
Note-se que, enquanto o inciso I do artigo 7º estabelece que os “termos contratuais da transação” serão considerados, o § 2º do mesmo artigo é claríssimo ao prever que, na hipótese de divergência entre os contratos e os documentos apresentados e entre os fatos e as condutadas das partes, estes últimos irão prevalecer.
Estamos diante da consagração legal do que há décadas o professor Marco Aurélio Greco se referia como consideração econômica do fato gerador, [5] aplicada, no contexto das regras de preços de transferência, ao delineamento da transação controlada.
Como apontamos no início deste texto, o modelo de regulação adotado pela Lei nº 14.596/2023 está, em grande medida, em linha com o que vimos defendendo academicamente, o que não significa que não seja possível que, em um caso ou outro, tenha-se exagerado na indeterminação conceitual ou na própria delegação de competências para a Secretaria da Receita Federal.
Ademais, é importante ressaltar que as características mencionadas não definem todo o novo sistema de controle de preços de transferência. Em outras palavras, a existência de indeterminações, delegações e a prevalência dos fatos sobre a forma não serão geradoras de incerteza e insegurança em todos os casos.
Ademais, com o tempo o natural processo de densificação normativa que se dá conforme os órgãos de aplicação do Direito interpretam/aplicam os textos normativos tornará o sistema cada vez mais concreto e determinado.
Dessa forma, nada do que afirmamos acima pode ser apontado como uma defesa de que o novo sistema seria “todo” indeterminado, ou que teria sido “integralmente” delegado, ou ainda que os termos contratuais de uma transação seriam “irrelevantes”. Certamente não é disso que se trata.
Nossa provocação neste artigo é uma só
A Lei nº 14.596/2023 é um ponto de inflexão no debate sobre a legalidade tributária no Brasil. Ela incorporou diversos aspectos que a teoria tributária nacional tradicional, ainda majoritária, historicamente considerou serem contrários ao princípio da legalidade — adjetivada como estrita — e ao dito princípio da tipicidade – apontada como cerrada.
Cremos que a realidade, há muito tempo, jogou por terra essas crenças em determinação conceitual e no enclausuramento da realidade em textos normativos. Contudo, a Lei nº 14.596/2023 veio para colocar — mais uma vez — essas concepções em xeque. Ou ela tem diversos dispositivos inconstitucionais — o que não nos parece ser o caso —, ou parte da doutrina terá que repensar sua visão sobre o princípio da legalidade.
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[1] ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 3 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2024. p. 34-39.
[2] ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal. São Paulo: Almedina, 2018. p. 87-91.
[3] ROCHA, Sergio André. Existe um Princípio da Tipicidade no Direito Tributário? In: ROCHA, Sergio André. Estudos de Direito Tributário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 95-109.
[4] CARRAZZA, Roque Antonio. O Princípio da Legalidade e a Faculdade Regulamentar no Direito Tributário. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 522.
[5] ROCHA, Sergio André. Planejamento Tributário na Obra de Marco Greco. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. p. 68-69.
Fonte: CONJUR